segunda-feira, 18 de abril de 2011

A Igreja Circo

Da área externa do estacionamento podiam-se ver as pontas das lonas que se erguiam numa altura descomunal. Nas torres principais vislumbravam-se contra o céu limpo as bandeiras com a logo da Igreja-Circo tremulando ao vento. Na extensão do grande pátio havia barracas de venda de todo tipo de produtos gospel desde frascos diversificados de óleos ungidos até bíblias de batalha espiritual e unção financeira, vendidas ao “preço módico” de 1000 reais.

Uma grande multidão se movimentava freneticamente, se avolumando na entrada principal, homens e mulheres se acotovelavam e se comprimiam buscando uma oportunidade para entrar e se acomodar debaixo da grande lona armada.

Um diácono-anão de chapéu de palha, suspensório e gravata borboleta postado sobre um alto palanque gritava em seu possante megafone que a hora se esgotava, e que o espetáculo já estava para começar.

Eu consegui entrar como por milagre, pois uma onda de fiéis me arrastaram contra a correnteza humana, e quando dei por mim, já me encontrava debaixo da Grande Lona, devidamente assentado, tendo uma visão privilegiada do picadeiro todo iluminado.

Lá dentro, havia um bulício generalizado, uma expectativa de que algo grandioso estava para acontecer, afinal de contas, todos esperavam que suas orações, necessidades físicas, emocionais e espirituais fossem miraculosamente atendidas pelo Grande Enviado, o ilusionista prestidigitador venerado por todos, que com suas mãos orvalhadas de óleo ungido de Jerusalém irradiava unção curadora e prosperidade financeira, mesmo que para atingir esse fim, fosse necessário dar tudo quanto tinha, dinheiro, pertences, fosse o que fosse até a doação do vale transporte e voltar para casa a pé, se pudesse ao menos tocar de leve aquela mão fomentada de unguento sagrado.

Antes da entrada triunfal do Grande Enviado, o espetáculo principal da noite, alguns bispos-palhaços cuidavam de entreter a grande massa. O que mais me impressionou foi a performance deles, as roupas dispendiosas que usavam, o modo de falar persuasivo, convencedor, em meio à explosão de foguetes multicoloridos e da chuva de serpentinas caindo brilhantes, saíam de dentro das BMW negras que circulavam ao redor do picadeiro, para se imiscuírem no meio do povo com sacolas de seda para coletar ofertas e contribuições, e eu mesmo, quando me dei por mim já havia posto na salva cem reais, que seriam destinados a pagamentos gerais, no dia seguinte, das despesas do final do mês.

Nesse ínterim, ecoou o som de um berrante executado por um homem todo caracterizado de judeu, e logo após, o ambiente se encheu com acordes de uma música de tonalidade estática, contorcionistas-levitas subiam de um alçapão lateral entoando um mantra repetitivo, que levou o povo a uma profusão de gestos descoordenados como se estivesse num transe coletivo, tomado por um êxtase inebriante.

Foi então quando os tambores rufaram produzindo um som ensurdecedor e apareceram de todos os lados dezenas de malabaristas-obreiros manipulando tochas de fogo que tremeluziam formando no ar palavras de afirmação, e acima de nossas cabeças, de uma altura vertiginosa, trapezistas-celulares caiam em queda livre, fazendo voos rasantes sobre a multidão que aplaudia eufórica, enquanto recebia borrifos revigorantes de água pura do Rio Jordão. Muitos choravam, outros se ajoelhavam com as mãos erguidas para o céu, balbuciando palavras ininteligíveis.

Foi então que a música atingiu o ápice, as luzes se apagaram e um canhão de luz espargiu sua luminosidade em direção ao centro do picadeiro, de onde se ergueu inesperadamente em meio a uma cortina de fumaça um púlpito giratório no qual estava atrelado o Grande Enviado, imponente, em seu fraque negro cintilante, portando cartola e cetro na mão, e no frontispício da tribuna se exibia um letreiro com letras luminosas de neon, onde se lia: Venham a mim para serem curados. Todos gritavam e aplaudiam entusiasticamente.

Quando ele ergueu a mão, bradou com voz postada exigindo do povo um brado de vitória e um salto de júbilo, foi quando me vi me erguendo conjuntamente com toda aquela multidão, como se tivessem molas ejetoras debaixo dos assentos, e num salto coreografado e sincronizado, todos pularam ao mesmo tempo e com o punho fechado gritaram a uma só voz: vidas, almas, células!

A seguir, o Grande Enviado expôs um sermão intimidador, se utilizando de textos bíblicos fora de seu contexto hermenêutico e exegético, contando histórias megalomaníacas de milagres e feitos heróicos, articulando doutrinas humanas e estranhas, porém, com forte cunho persuasivo, e no final do sermão, exigiu que ninguém questionasse suas palavras, pois era ungido do Senhor, sob pena de qualquer um que o contrapusesse, ser acometido de enfermidades terríveis ou de ser fulminado com morte súbita, como castigo de Deus.

Após emitir palavras de comando e frases de efeito poderosas, mostrou a todos a cartola vazia, e depois, num gesto afetado, retirou de dentro um cordeirinho branco, o que levou o povo a um verdadeiro frenesi de estender de mãos, gente se atropelando e correndo em direção ao seu benfeitor amado, para ser tocada e ungida por ele.

Foi aí que eu caí em mim, e fui como que arrebatado de um transe hipnótico profundo, e me vi ali, lúcido, a mente cristalina, me sentindo como um peixe fora d‘água, percebendo o quão longe do Evangelho da Graça aquelas pessoas estavam.

Aí foi que, num arrobo de zelo e ira santa, me lancei energicamente à frente para contrapor as investidas malignas do líder poderoso, e enquanto erguia o dedo indicador na autoridade de Jesus para repreendê-lo, eu acordei abruptamente de meu sono pesado, suando e sobressaltado, ao discernir que estava imerso em um pesadelo, um sonho atormentador, aliviado por um lado por ter despertado, mas apreensivo por outro, ao perceber que a realidade não estava tão distante do meu pesadelo perturbador.


Fonte: Manoel D.C. no Genizah
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